Das escolhas de cada dia, uma reflexão sobre o suicídio de expectativas e oportunidades

Nunca as taxas de suicídio estiveram tão elevadas como nos nossos dias. Não me refiro ao suicídio no sentido lato do termo, ou seja, ao ato de pôr termo à própria vida, ainda que esse fosse um ótimo tema de discussão, dado aos significados e mitos que o envolvem; mas sim a outro género de suicídio, um suicídio de sobrevivência, uma espécie de morte vivida. De quando em vez, absorvo-me nessa reflexão, que aqui trago.
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Refiro a um tipo de suicídio específico, a que de uma forma ou de outra estamos expostos e ao qual somos todos permeáveis de uma forma ou de outra, isto é, ao suicídio ou sacrifício de oportunidades, expectativas, relações, valores e futuros, em prol de outras causas menores, e por vezes, de coisa alguma.

Suicídios e sacrifícios dos quais nos arrependemos ou “empurramos com a barriga”, cito a expressão, evitando leituras que nos tragam sofrimento. Todavia, inevitavelmente, pela sua índole social e psicológica, comprometem e condicionam, tanta e tantas vezes, as nossas circunstâncias, sejam elas sociais, psicológicas ou físicas.

Em contraponto ao suicídio efetivo - ato de por termo à própria vida, este suicídio ou sacrifício não se caracteriza, tanto pelos fatores sociopsicológicos pré-existentes, por muitas vezes presente ideação suicida ou planeamento do ato e da sua consequência última, a morte. Posto isto, este suicídio trata-se de um ato mais simplista, onde sobretudo falta a racionalização e a análise de consequências do mesmo num plano imediato ou futuro.  Caracteriza-se pela inconsciência da relação entre os nossos comportamentos/atitudes face à vida e o futuro. Pela não assunção, ou tardia, das nossas responsabilidades, naquilo que acontece, consequências efetivas e diretas dos nossos comportamentos.

Assim, este suicídio, trata também da nossa vivência como seres sociais, das expectativas e pressupostos inerentes a essa condição – do papel do indivíduo na sociedade. Das perdas e não dos ganhos, sejam eles consciencializados ou não. Não seria um suicídio se houvesse ganhos. Da irreversibilidade dos atos, não da reversibilidade. Da possibilidade de evitamento, não da inevitabilidade. Da previsibilidade, não da imprevisibilidade das consequências. Trata do nada e não do tudo.

Assim sendo, falamos em perdas irreparáveis, em consequências negativas conjeturáveis, de comportamentos evitáveis, de caminhos percorridos ao acaso, em direção a abismos irregressíveis. São suicídios evitáveis, pelo uso da razão, pela busca do equilíbrio, de valores e prioridades. Tais suicídios são motivados pela inflexibilidade, impulsividade e insensatez de pensamento, que tanto nos caracteriza como seres sociais.

Nesta leitura, a motivação para tais suicídios pode ser esclarecida pelos conceitos durkheimianos, sobre o suicídio efetivo, pois também nesta visão menos ortodoxa do suicídio o mesmo, se pode explicar pela relação do indivíduo com a sociedade e o seu papel nesta, podendo assim ter diferentes naturezas. Em tudo se aplica, do egoísta que vive à margem da sociedade ao anómico que perdeu as suas referências socias. Supérflua discussão, neste momento! Não podemos discutir a motivação daquilo que não está ainda consciente.

Porém lúcidos, falamos de um tipo de suicídio onde a priori não está presente qualquer disfunção física ou cognitiva, ou seja, não é resultado direto ou limitado por uma condição de saúde preexistente, mas sim pela falta de leitura prévia de perdas e ganhos.

Não faço aqui uma leitura patológica, ainda que em determinados casos o pudesse fazer.

Para evitar confusões, socorro de conceitos sociológicos, mas igualmente profundos em reflexão.

Para ilustrar, tomo o seguinte exemplo, que no contexto social, que hoje vivemos, nos é tão familiar: a falta de tempo para a família. Numa sociedade cada vez mais competitiva e intensa em informação e significados, reduzimos muitas vezes, o tempo que passamos em família, sem consciência dos prejuízos de tais comportamentos nas nossas relações familiares e consequentemente no nosso bem-estar físico e psicológico. Quantos de nós conhecem, a muitas vezes, realística fábula do pai de família, que só pensava em trabalho e descurou totalmente a sua família e saúde. Chegado à reforma, não tinha saúde para a disfrutar ou família para compartilhar?  Todos, talvez.

Este exemplo simplista é claro, nesta noção de suicídio que aqui exploro. Pois traz a si, entre outras, toda a significância de previsibilidade, irreversibilidade, arrependimento, inconsciência comportamental, consequência negativa, perda de oportunidades, futuros, expectativas e relações ou comprometimento de valores, se estes existem. Isto é, exemplo do suicídio de cada dia, em prol do nada, da contradição entre o comportamento e as expectativas para o futuro. O chamado “sair o tiro pela culatra”, passando a expressão.

Precisamos de refletir sobre a vida, sobre o papel que desempenhamos, sobre as prioridades, sobre os valores, sobre as oportunidades, sobre as expetativas, sobre os todos objetivos, sobre tudo e não sobre o nada, sobre o que somos, sobre o queremos, sobre o que espectamos.

Não somos imunes, inócuos ao passado. A nossa vida não é consequência do acaso. Precisamos aprender a viver com isso.

Somos o resultado dos nossos comportamentos e cognições, das próprias interpretações da realidade, somos o cumular do passado, das nossas escolhas, ainda que inconscientes.

Sobeja-nos avaliar, prevenir, consciencializar, evitar o suicídio, a morte vivida. Pensar.

Quantos suicídios já cometemos na nossa vida? Podiam ter sido evitados? O que aprendemos com eles? O que perdemos e o que ganhamos?

 São perguntas que devemos fazer, que nos permitirão encontrar o almejado equilíbrio, encontrar os nossos valores, aceitar as realidades que autoimpomos.

Evitar estes comportamentos suicidas é por si só uma medida preventiva e higiénica de bem-estar psicológico e saúde mental, na medida em que proporciona uma maior satisfação com a vida e um melhoramento das relações pessoais, tanto como, proporciona a descoberta interior e verdadeira consciencialização de valores.

 

Herculano Andrade

Psicólogo Clínico, membro efetivo OPP

Sociólogo

 

 

 

 

 

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