Do valor da palavra

Todos os livros que li marcaram-me de uma forma ou de outra. Após a leitura de um livro faço uma reflexão sobre o que aprendi com a história e personagens, tanto do ponto de vista filosófico como do ponto de vista cognitivo comportamental.
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De facto, creio que a leitura é um excelente mecanismo da compreensão e aprendizagem do comportamento humano, assim como na vida real, tudo é possível, tudo pode acontecer, todavia temos um maior e melhor enquadramento dos atos.

A literatura permite-nos compreender o fenómeno na sua globalidade, dentro da maior irracionalidade que a história possa ter, como são exemplos as ficções cientificas, onde encontramos sempre uma determinada lógica. Há lições que se aprendem, não raras vezes, dou por mim a refletir sobre as obras que li e quais os paralelismos com circunstância em que estou. Muito me serviram, devo dizer.

Por estes dias refleti várias vezes na "História do Cerco de Lisboa” de José Saramago. Neste brilhante livro Saramago conta a história de um revisor literário que decide alterar num ato de rebeldia consciente a obra que revê – História do Cerco de Lisboa – acrescentando simplesmente a palavra “não”, na parte em que os cruzados (não) ajudam El-Rei D. Afonso Henriques no cerco a cidade de Lisboa.

Esta simples palavra, a ser verdade, alteraria todo o curso da nossa história, é também sobre isso que Saramago nos instrui, mas creio que o seu objetivo maior era mostrar-nos, a nós leitores, a volatilidade das palavras. O quanto dar o dito pelo não dito, pode afetar a realidade, a nossa e a dos outros, ferir expectativas, perder rumos e oportunidades.

Na conceção da personagem principal da obra de Saramago, Raimundo Silva, imagina que os Cruzados, à última da hora, optam por não ajudar os portugueses, e todo o possível impacto que isso teria no decurso da história.

Felizmente para nós portugueses enquanto nação, pelo menos, os Cruzados honraram o seu compromisso com El-Rei D. Afonso Henriques e com os portugueses, evitando o que a maioria achará certamente, um mal maior.

Transponhamos então, esta noção tão frequente, para o nosso dia-a-dia, quantos de nós e quantas vezes damos o dito pelo não dito, ou somos sujeitos ao dito pelo não dito, que é como quem diz, em bom português, faltamos ou nos faltam com a palavra? É sobre isto que trata também Saramago, é sobre isto que urge refletir.

Este comportamento de falta de palavra, seja qual for a direção, é um dos atos mais ignóbeis que um Homem pode ter.

A honra foi em tempos um valor associado à palavra, um Homem honrado era necessariamente um Homem de palavra e vice-versa. Creio que hoje, ainda assim o devia ser, para mim é-o certamente.

Neste sentido, e porque falamos de histórias, permitam-me a liberdade de recuperar uma história da minha família sobre o valor da palavra, mais precisamente do meu avô materno, de quem herdei o nome, que infelizmente nunca conheci, mas mesmo assim este Senhor será sempre um modelo.

Para este meu avô, a palavra tinha tanto ou mais significado que um papel oficial, fosse ela dada em que circunstâncias fosse, uma vez dada, não havia como voltar atrás. Assim, num momento infeliz de confraternização com amigos, já sobre o efeito de longas horas de festa e após um dissabor familiar, disse vender uma casa de família a um dos presentes; no dia seguinte, porque a memória é dura nestas alturas, refletindo, arrependeu-se. Todavia, apesar do interesse mantido, o comprador dispôs-se a abrir mão do negócio, por compreender as circunstâncias de tal; mantendo a palavra dada, o Senhor meu avô perdeu por irrisória situação a casa que há mais de quinhentos anos estava na nossa família.

Muitos verão nesta história um ato de puro devaneio, pois eu vejo um ato de puro caráter e honra, que apesar das circunstâncias em nada diminuíram os seus valores.

Hoje infelizmente, a palavra dada são palavras ao vento, de nada valem e se valem tem de ser sustentadas por um documento oficial, pois todo (o resto) o vento levou. Não há sequer o mínimo de consideração em tentar cumpri-la, as palavras são ditas ao sabor do vento. Tal não demonstra desconsideração pelo outro, mas apenas por si próprio, pois o valor do outro em nada se diminui, só o do Homem desonrado. Lembremo-nos: “Vê-se pela aragem quem vai na carruagem!”

Não tenho dúvidas que há consequências inevitáveis da falta de palavra, tanto para quem falta com ela, como para o outro. Para o próprio poderia enumerar um sem fim de nefastas consequências, mas penso que a maior tudo traduz na desonra propriamente dita. Para os outros, traduz todas as dificuldades que a palavra dada pretendia ultrapassar, o prejuízo do incumprimento.

Mas uma coisa é certa, sobre aqueles que tantas e tantas vezes dão o dito pelo não dito, põe-se a hipótese: “Onde não há honra, não há desonra!”

Quando falo na falta de palavra, não refiro a situações, claro está, que por força maior das circunstâncias e alheias aos intervenientes impossíveis de suprir, objetam em que a palavra dada seja necessariamente caída, todos nós passamos por isso nos dois versos da medalha, uma vez que todos somos falíveis; refiro sim, todas as outras situações em que não há uma tentativa ou qualquer intenção, como nos apercebermos no nosso dia-a-dia, de cumprir a dita palavra. Isto na verdade não traduz uma ausência de valores, traduz sim valores diferentes, contrários ao bem comum e relacional.

Não pretendo e não vou alongar-me sobre a natureza deste fenómeno tão comum, de faltar deliberadamente com a palavra ou sem intento remediativo, eram palavras ao vento, muito menos sobre as consequências sociopsicológicas em cada um.

Pesa o facto que todos somos diferentes, uns mais do que outros e no que trata ao assunto aqui em questão, felizmente. São naturalmente questões de natureza introspetiva!

Ainda sobre a obra, “História do Cerco de Lisboa” que recomendo fortemente, relembro que é uma obra riquíssima de significados, como todas as outras do autor. Recordo um trecho de Raimundo Silva (personagem principal) para Maria Sara: “(...) Nunca Saberemos até que ponto as nossas vidas mudariam se certas frases ouvidas mas não percebidas tivessem sido entendidas (...)”, mas sobre isto escreverei certamente, noutra altura.

Herculano Andrade

Psicólogo Clínico, membro efetivo da OPP

Sociólogo

 

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