De nossa presumível justiça

Nos últimos tempos fala-se muito em justiça, do que é justo, de quem é justo. Mas pouco se fala de ser justo. Talvez seja importante pensar sobre isto.
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Há hoje quase 7,5 biliões de estilos de vida no mundo, tantos quantos os seres humanos. Todos com os seus valores, todos com as suas liberdades e limitações, todos únicos e individuais; com arestas em comum ou em total desalinho. Podíamos agrupá-los: dos conservadores aos geeks; dos punks aos hipsters, e por aí fora, quantos grupos houver. Não sou especialista, e tal não vem agora ao caso.

Contudo, existe algo nestes estilos de vida, nuns mais do que outros, que se começa a perder, mas que deveria ser transcendente e inato a todos; valores universais ao ser humano, a vida e o estilo. Há uma relação ente valores e estilo de vida, pois considero que os primeiros, são indicativos ou características do segundo, ou se tem ou não, radicalizando.

Um desses valores é a justiça, não a justiça do olho por olho, dente por dente, mas a justiça do equilíbrio entre o nosso bem e o dos outros. A justiça que nos permite crescer sem invadir o espaço do outro, a justiça de compreender que não podemos ou não devemos ser ou ter tudo, de aceitar as limitações e de compreender e auxiliar os outros. A justiça de saber perder, de saber ganhar e de quando partilhar, de quando retirar.

A simples justiça de viver em conformidade, com os nossos valores e os da sociedade.  A justiça de esperar a nossa vez na fila da caixa de pagamento, de aceitar as consequências dos nossos atos das coisas comuns do dia-a-dia. O justo para todos, e não o justo do umbigo.

A justiça de ouvir a opinião alheia, de saber o que julgar, da igualdade entre os Homens, da retidão e coerência, a de não haver espaço para dois pesos e duas mediadas perante os mesmos factos e circunstâncias.

Somos cada vez mais individualistas, mais egoístas. E como tal, a justiça é um valor que se vem perdendo, que se sublima. Indicador de um estilo de vida antiquado e ultrapassado, arrisco. Mas que deve ser de novo cogitado, pois a leitura atual trata da justiça do eu, do umbigo, repito.

Os estilos de vida contemporâneos, assentam numa justiça amorfa, de desejabilidade social, "para inglês ver”, passo a expressão. Na justiça do egoísmo, onde é injusto tudo aquilo que de mau nos acontece ou nos deparamos. É justíssimo tudo de bom e agradável que nos sucede, mesmo que daí advenha o mal de toda a humanidade. Sorte, dirão alguns de quando em vez. Karma, dirão outros tantos. Justiça, dirão todos os outros.

Mas então!? É assim tão justos lucrar, advertidamente, com o mal dos outros? Somos assim tão felizes, como julgamos, quando cometemos injustiças? O filósofo grego, Sócrates, em "A República” de Platão, discorre sobre estas e outras respostas, muito melhor do que eu alguma vez farei. Como tal, remeto para esta histórica obra, e para os seus diálogos, tais conclusões. Faça cada qual de sua justiça, na interpretação dessa obra.

Raras são as pessoas verdadeiramente justas, mas mais raras ainda serão aquelas que se consideram injustas (este seja talvez o problema maior).  Esta última, na sua maioria, apesar de não buscarem a justiça nas coisas do dia-a-dia, justificam tal posição pela busca de justiças maiores, entre outras a justeza de ter governantes justos e íntegros. Nada contra, antes pelo contrário!

Reconheço que o conceito de justiça pode variar de pessoa para pessoa, mas defenderei sempre uma noção de justiça global.

Pois, parto do pressuposto que a maior parte dos humanos não é masoquista, no sentido em que procura evitar o sofrimento próprio. Todavia, desconfio que grande parte seja sádica, no sentido que, em prol do seu próprio interesse não tenha um sentimento desagradável, mas por vezes até agradável, em provocar o sofrimento alheio. O sentimento de superioridade, de elevação, de impunidade subjacente a injustiça praticada em prol do bem próprio, é por si só ilustrativa deste sadismo. Nesta leitura, a justiça pode muito bem ser uma conceção global, um valor universal, no sentido que se apresenta implícita a noção da procura do equilíbrio entre o melhor para nós e quiçá para os outros.

Na ausência da procura deste equilíbrio e no egoísmo, está assente necessariamente a injustiça. Contudo, importa referir que este “melhor para nós” não deve ser levado à letra, um estilo de vida justo, traz dissabores. Consequência inevitável, julgo.

Um estilo de vida pautado pela justiça pode não trazer a recompensa imediata, a imediatidade pode ser obscura. Tal posição, constitui, porém, alicerces para uma sociedade mais justa e equilibrada, num amplo sentido.

Fundações estas que aliadas a uma alta e trabalhada capacidade de resiliência e tolerância à frustração, nos permitiram a sustentabilidade da justiça, como valor universal e de progresso. A adoção de um estilo de vida justo é o primeiro e único passo possível na construção de uma sociedade justa, igualitária.

Visto que, inevitavelmente somos modelos, referência para alguém: para o filho, para o primo distante, para o aluno, para o vizinho, para todos aqueles com que interagimos.

Assim sendo, devemos “dar exemplo”, útil, moldar a sociedade na justiça, perseguir um estilo de vida justo, espalhá-lo como um vírus altamente contagioso, e assim contrariar a injustiça.

Os exemplos não carecem vir do topo para serem amplamente aceites e recriáveis. Aliás, vejamos os estilos de vida mais recriados começaram em pequenos grupos, maioritariamente de pouca expressão e influência social, todavia, alcançaram todas as esferas sociais.

Posto isto, talvez não sejamos tão justos quanto pensávamos. Se assim for, como acredito que seja, como é possível ficarmos indignados com um governante corrupto, quando nós próprios aceitamos beneficiar um amigo num negócio em prol da amizade, em detrimento de terceiros? Qual de nós o mais justo? Até que ponto esta indignação é justa?

É certo que o injusto pode reconhecer a injustiça do outro, a mais quando a injustiça é perante si, mas também é certo, que o injusto reconheça a sua própria injustiça perante os outros. Caso contrário, o injusto será porventura, também leviano.

Não deixa de ser admirável a capacidade dos humanos, em exigir aos outros aquilo que têm ou não são. Agimos por comparação, somos justos, pois os outros são ainda mais injustos. Esquecemos, porém, que somos espelhos uns dos outros. É necessário pelo menos um mudar para o reflexo do espelho se modificar e se replicar.

Não apregoo falsos moralismos. Não creio o melhor exemplo, o ideal de justiça. Acredito que um estilo de vida 100% justo seja algo dificílimo de alcançar, um caminho longo que a humanidade terá de percorrer. Todavia, defendo que cada passo nesse sentido é certamente um passo mais adiante na construção de uma sociedade justa e equilibrada. É seguramente nas pequenas coisas que podemos fazer a diferença.

Nunca se viveu em tal estado de graça, creio. Talvez nunca se chegue a viver. Porém, são cada vez mais raras as pessoas que se pautam maioritariamente pela justiça.

No passado, a educação baseada na sabedoria popular foi durante séculos o nutriente base dos estilos de vida, ainda que assim não fossem conhecidos.

A transmissão de valores universais como a justiça, eram comuns. Hoje, talvez se tenha perdido esse hábito, ou desmerecido o seu valor instrumental, a julgar pela realidade experienciada. Todos perdemos.

Talvez devamos recordar: “Nunca faças ao outro, aquilo que não queres que te façam a ti; faz ao outro aquilo que queres que te façam a ti”. Interessantes premissas estas, que tudo resumem, a sabedoria popular nos oferece.

Herculano Andrade

Psicólogo Clínico, membro efetivo da OPP

Sociólogo

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