David Ângelo: investigação em ovelhas pode revolucionar tratamento da disfunção mandibular

Em Portugal os apoios para a área da investigação ainda deixam muito a desejar, mas quando se quer encontrar a solução para um problema o dinheiro (ou a falta dele) não é entrave. Que o diga o médico e investigador David Ângelo que decidiu pedir um empréstimo bancário para iniciar uma investigação a fim de encontrar um tratamento eficaz para quem sofre de disfunção mandibular. E, se tudo correr como o previsto, em 2018 será feita a primeira intervenção.
:
  

Está prestes a concluir uma investigação que vai permitir realizar uma cirurgia pioneira para doentes com disfunção temporomandibular. Há quanto tempo foi iniciada a investigação?

Esta investigação começou a ser planeada em maio de 2012 numa altura em que eu comecei a dedicar-me mais aos doentes com problemas de disfunção  temporomandibular. Senti que as opções de tratamento eram muito limitadas nesta área da Medicina e nenhum dos tratamentos estava orientado para a regeneração das estruturas articulares. Isso motivou-me para iniciar esta investigação com o principal objetivo de tentar alcançar algo de novo na área da Medicina para melhorar a qualidade de vida destes doentes.  

O que o levou a iniciar esta investigação? Que etapas foram feitas até ao momento?

Antes de iniciar qualquer trabalho científico é necessário que o caminho a seguir assente numa base sólida, estudar os meios para alcançar o objetivo, considerar todas as  etapas a realizar, contemplar os possíveis contratempos que possam aparecer e a forma como devem ser resolvidos. O grande objetivo foi, desde o início, conseguir regenerar o disco da articulação temporomandibular que nos doentes com patologia severa se encontrava danificado. Tratando-se de uma estrutura fibrocartilaginosa que quando está perfurada ou danificada não tem a capacidade intrínseca de se regenerar há a necessidade, então, de removê-la. Quando se remove essa estrutura, que é tão importante para o bom funcionamento da articulação, é necessário colocar algo nesse espaço. Até à data tentaram-se vários tipos de soluções para substituir o disco. A mais conhecida foi em 1991, quando um grupo americano de investigadores interpôs no lugar do disco o chamado Proplast-Vitek Teflon. No entanto, esta solução fracassou porque não aguentou as forças mastigatórias, degradando-se em pequenos fragmentos dentro da articulação. Esses pequenos fragmentos foram sujeitos a grandes pressões tendo acelerado o processo degenerativo e a erosão do osso de modo que alguns doentes ficaram com graves complicações, como por exemplo o côndilo mandibular dentro do crânio.

Estas complicações levaram à emissão de um comunicado pela Food and Drug Administration (FDA) para a remoção de todos os implantes. Em consequência deste episódio, vários grupos abandonaram as investigações nesta área e esse receio durou alguns anos. Entretanto, com os avanços na área da bioengenharia de tecidos registados nesta década, abriu-se uma janela de oportunidade resultante de uma intensa investigação na área do joelho e da coluna.

Existem vários grupos a investigar soluções para substituir o disco da articulação temporomandibular e nós também entrámos nessa área da investigação mas com uma estratégia diferente e inovadora.

Quando foi assumido o objetivo, foi necessário desenhar uma estratégia em que cada etapa fosse planeada com rigor e isso iria diferenciar-nos dos outros grupos. Analisámos com cuidado o que já tinha sido feito no passado, os desenhos dos estudos, os erros cometidos e as suas conclusões. Tínhamos de conseguir progredir cientificamente nesta área para alcançar algo de inovador.

Muito importante para o nosso grupo foi  definir em que modelo animal deveria ser conduzida a investigação. Os demais grupos investigaram em coelhos, ratos, porcos, entre outros animais. Ora, investigar em modelos tão heterogéneos torna difícil qualquer conclusão significativa. Começámos por investigar qual seria o melhor modelo animal para conduzir ensaios pré-clínicos na área da ATM (articulação temporomandibular), sendo importante para o nosso estudo mas também como referência para futuros investigadores. Durante dois anos investigámos diversos animais, vimos qual era o que tinha a melhor anatomia, o acesso cirúrgico mais parecido com o do humano, a biomecânica mais semelhante, as propriedades do disco mais próximas com as do humano e concluímos que a ovelha era o animal que reunia todas essas características.

Registo fotográfico dos primeiros estudos morfológicos em diversos crânios de animais em 2013.

Registo fotográfico dos primeiros estudos morfológicos em diversos crânios de animais em 2013.

Dentro das ovelhas também tivemos o cuidado de usar a raça Black Merino que provou ser consistente em termos de fenótipo, de anatomia e de propriedades biomecânicas do disco, etc. Deste modo, propusemos à comunidade científica que futuros estudos nesta área deveriam ser conduzidos em ovelhas Black Merino, fêmeas com idade compreendida entre os dois e os cinco anos, reduzindo assim a possibilidade de variabilidade dos resultados inter e intra-estudos. Este trabalho ganhou um prémio de 1.º lugar numa iniciativa de apoio à investigação patrocinada pela Ordem dos Médicos, acabou por ser publicado numa revista prestigiada e também foi  apresentado em alguns congressos, dos quais destacaria o de Barcelona, o qual reúne os clínicos e investigadores de referência na área de ATM. Depois de termos apresentado os resultados da primeira fase da investigação, a comunidade recebeu positivamente o estudo e concordou que futuros estudos devem ser feitos neste animal. Diria que este foi o primeiro grande avanço do estudo.

No seguimento da análise de estudos prévios, reparámos que nunca houve a preocupação de manter a anatomia do disco nativo. Uma das estratégias definidas seria manter o rigor anatómico do disco nativo e reproduzir o mesmo na perfeição usando bioimpressão 3D. Isto iria ser outra inovação e provavelmente seria um dos elementos cruciais para ter sucesso na investigação que também foi premiado com uma bolsa da European Federation for Experimental Morphology.

David Ângelo com a sua equipa no CDRSP, quando fizeram o scanning 3D do disco nativo da ovelha Black Merino.

David Ângelo com a sua equipa no CDRSP, quando fizeram o scanning 3D do disco nativo da ovelha Black Merino.

Foram necessários quase três anos para preparar tudo. É nesta fase que a maior parte dos investigadores desiste por falta de apoios. São três anos em que, como ainda não fizemos nada de palpável é difícil obter financiamento. Fiz um grande esforço para manter a minha atividade clínica hospitalar, dedicando-me nos tempos livres em exclusivo a este trabalho.

Após esta fase, avançámos para o estudo pré-clínico e, numa primeira fase, foi essencial provar que o disco tem um papel importante na articulação. Não podíamos estar a fazer um esforço tão grande para regenerar o disco se concluíssemos que, ao retirar o mesmo, a articulação se adaptava e não haveria alterações major.

Com a ajuda de uma equipa coordenada pelo Prof. Doutor Joaquim Ferreira desenhámos um estudo para responder a essas questões. O que fizemos foi randomizar as ovelhas e alocar as mesmas a cada grupo de intervenção. Depois fizemos o seguinte: num grupo de ovelhas tirámos os discos bilateralmente e no outro grupo tirámos o disco e voltámos a colocá-lo para perceber se apenas uma intervenção articular poderia causar algum dano à articulação. Usámos um grupo controlo no qual foi feita uma incisão, dissecção dos tecidos mas sem entrar na cápsula articular e voltámos a fechar. A equipa responsável por medir os resultados estava oculta para a intervenção, ou seja, não fazia a mínima ideia do que tinha sido feito em cada ovelha.  Assim diminuímos a probabilidade de enviesar os resultados. Após medir variados outcomes, alguns deles piloto, concluímos que o disco tem um papel importantíssimo na prevenção de processos degenerativos na articulação de modo que o caminho ficou aberto para tentar regenerar o disco.

Instalações construídas com a ajuda de uma bolsa de investigação da Fundação Grünenthal para conduzir o estudo. Estas instalações encontram-se certificadas pela DGAV para conduzir investigação animal.

Instalações construídas com a ajuda de uma bolsa de investigação da Fundação Grünenthal para conduzir o estudo. Estas instalações encontram-se certificadas pela DGAV para conduzir investigação animal.

Fui contatando vários grupos com experiência e know how em bioengenharia de tecidos e juntamente com eles trabalhámos biomateriais inteligentes com a morfologia e biomecânica do disco, associada à capacidade de recrutamento celular controlada.

Contatámos a Universidade de Pittsburgh nos Estados Unidos da América, mais concretamente o Departamento de Bioengenharia, que aceitou logo à partida com grande entusiasmo o convite. Endereçámos o mesmo convite ao Departamento de Bioengenharia do Instituto Politécnico de Leiria (CDRSP), com quem já estávamos a trabalhar para a caracterização inicial do disco, que aceitou também com grande entusiasmo o desafio. Estes foram os nossos parceiros para a produção de biodiscos que foram sujeitos a vários testes “in vitro”. Após um ano e meio, foi possível obter os primeiros resultados favoráveis em termos da biomecânica e anatomia 3D e, perante tais resultados, planeámos a segunda fase cirúrgica para 26 e 27 de janeiro. Nessas intervenções, que contaram com a presença de cirurgiões que são referências mundiais na ATM, nomeadamente o Prof. Doutor Florencio Monje Gil (Presidente da Sociedade Europeia de Cirurgiões de ATM), foram removidos os discos das ovelhas e foram introduzidos os nossos biomateriais.

Biodiscos usados na fase 2 do estudo.

Biodiscos usados na fase 2 do estudo.

Neste momento, o que posso dar como novidade é que as ovelhas tiveram alta do Hospital da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa. Durante o internamento estiveram estáveis e não houve intercorrências a registar, tendo sido este processo monitorizado pela excelente equipa de médicos veterinários que me tem acompanhado desde o início. Agradeço em especial à Dr. Belmira Carrapiço e à Dra. Sandra Cavaco. À partida, parece que os discos estão a ter um bom comportamento na articulação, no entanto, os resultados mais exatos só serão conhecidos em agosto. Relembro que estes foram colocados na articulação e vão ficar durante um período de seis meses com o objetivo de se irem degradando ao mesmo tempo que proporcionam um recrutamento celular controlado.

Só foram feitas estas experiências em ovelhas?

Antes de chegar às ovelhas há todo um patamar de estudos que são feitos “in vitro”, desde testes de toxicidade, testes biomecânicos, biocompatibilidade, etc. São, aliás, estes testes obrigatórios que nos permitem avançar para a fase de testes em animal. Se tudo correr bem, em 2018 e com mais estudos a incidir no biomaterial que obtenham melhor comportamento, tentaremos reunir as condições necessárias para poder propor este tratamento a doentes que necessitem realmente de substituição do disco.

Que apoios tem recebido até ao momento para desenvolver as suas investigações?

Essa é uma pergunta muito importante, que agradeço. Fazer uma investigação na área da saúde, em Portugal, exige muita persistência e boa vontade e há quem pretenda separar a clínica da investigação, o que nem sempre é possível, especialmente em pequenos países como o nosso. Quando tinha 27 anos, motivado e com vontade de iniciar esta investigação, candidatei-me a uma bolsa  da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), entidade que normalmente financia este tipo de projetos. Alguns meses após a candidatura recebi a notícia que não tinha atingido os requisitos mínimos, mas acreditei sempre que seria aceite pelo facto de se tratar de um projeto que para além do valor científico poderia ajudar os doentes. Foi com profunda desilusão que verifiquei não ser esse o caso. Não desisti e, após analisar as soluções, decidi pedir um empréstimo ao Banco Santander Totta e foi com esse dinheiro que comprei as primeiras ovelhas, paguei as propinas e paguei um curso para poder realizar investigação em animais.

Foi assim que comecei a minha investigação. Hoje não me arrependo da decisão que tomei, mas ironicamente sei que se estivesse noutro país em vez de estar a pagar uma pesada prestação ao banco estaria a receber uma bolsa mensal para este projeto.

Diria que o balão de oxigénio chegou quando tive o privilégio de ganhar uma bolsa de 10 mil euros da Fundação Grünenthal.

Momento em que David Ângelo recebe a bolsa de jovem investigador 2015 pela Fundação Grünenthal, entregue pelo Secretário de Estado da Saúde.

Momento em que David Ângelo recebe a bolsa de jovem investigador 2015 pela Fundação Grünenthal, entregue pelo Secretário de Estado da Saúde.

Esta bolsa permitiu construir as instalações base para conduzir o estudo que consegui que fossem posteriormente certificadas pela DGAV. Trata-se de um espaço que era necessário para usar como biotério e assim continuar a trabalhar na investigação.

Entretanto, fui contemplado com uma outra bolsa atribuída pela Ordem dos Médicos do Oeste. Uma história curiosa foi quando fiquei em primeiro lugar nas bolsas de Doutoramento da Universidade de Lisboa, contudo, não pude usufruir desta bolsa porque a contrapartida era rescindir o meu contrato de trabalho com o hospital. Era algo que não poderia fazer e, por isso, tive de recusar a bolsa que me obrigava a exclusividade, mantendo o investimento pessoal. O dinheiro que eu ganho é investido neste projeto porque acredito que pode mudar a vida de muitas pessoas. Penso que no futuro vai haver um retorno, mas sem dúvida que tem havido grandes dificuldades e eu tenho muita pena que em Portugal não haja apoios suficientes aos jovens médicos investigadores. Não faz sentido...

Infelizmente, as bolsas estão preparadas para pessoas que se dedicam a tempo inteiro aos doutoramentos. Eu faço o doutoramento em part-time e, qualquer tempo livre que tenho, dedico-o ao meu doutoramento mas continuo a ter a minha atividade clínica no e fora do hospital. Tento sempre conciliar as duas condições que eu considero importantes para manter a investigação ao mais alto nível, pois é através da minha experiência clínica, do contato com os meus doentes, observando as  dificuldades que os doentes sentem que posso ir ajustando a investigação.

A minha opinião é que a investigação que realmente traz mudanças surge da necessidade e das dificuldades que sentimos no tratamento dos doentes.

Quais as maiores dificuldades sentidas ao longo do projeto?

A primeira grande dificuldade foi sem dúvida os apoios financeiros e posso afirmar que são os motivos financeiros que estão na origem da desistência da maioria das investigações.

A segunda dificuldade prende-se com o tempo. Ou seja, manter a minha atividade clínica e conciliar um doutoramento não é fácil. Mas consegue-se. É preciso ter uma grande paixão pelo que se faz, ter uma grande dose de boa vontade e de persistência.

A terceira grande dificuldade foi sem dúvida encontrar quem estivesse disponível para ajudar. Temos grandes investigadores em Portugal, mas infelizmente não têm muita disponibilidade. Por isso, tive de ser autodidata em grande parte das áreas e tive de estudar muito para dominar na perfeição algumas áreas que não eram do meu conhecimento. Foi uma grande dificuldade que eu senti, mas, por outro lado, isso ajudou-me a crescer bastante e, hoje em dia, posso afirmar que tenho conhecimento em todas as áreas do meu doutoramento. Estive sempre presente em todas as etapas do doutoramento.

Uma outra grande dificuldade foi encontrar motivação por parte dos parceiros em colaborar comigo no projeto. Isto, usando um provérbio popular, é uma “pescadinha de rabo na boca”. Porquê? Porque nós temos uma ideia boa mas não somos conhecidos. Como não somos conhecidos, ninguém nos quer ajudar e como ninguém nos quer ajudar não andamos com o projeto para a frente.

Sinto que o momento chave que desbloqueou toda a minha investigação foi quando eu ganhei a bolsa da Grünenthal que teve um grande mediatismo e foi mais fácil mobilizar talentos para o projeto, mas na área da investigação em Portugal há um défice de investimento associado a uma fraca cultura de investigação. Quando acabar o doutoramento, o mais provável é não haver nenhum benefício imediato com isso. Este sacrifício pessoal e profissional de cinco ou seis anos será reconhecido? Não sabemos a resposta a essa pergunta, mas sabemos que houve uma tentativa para o progresso das opções terapêuticas dos doentes e para o progresso científico.

Considero que estas questões são importantes porque a nível europeu, Portugal é um dos países com menos impacto em termos de publicações científicas.

Quem o tem apoiado de forma incondicional desde que iniciou a investigação?

O meu orientador, o Professor Doutor Francisco Salvado sempre me apoiou e ajudou. O Professor Doutor Joaquim Ferreira, Diretor do Laboratório de Farmacologia da Universidade de Lisboa foi um elemento decisivo neste trabalho. Tive inúmeras reuniões com ele e, sem dúvida, que ele foi a peça essencial para eu ter o projeto que tenho hoje e para conduzir a investigação com um rigor extremo. Na minha opinião o Professor Doutor Joaquim Ferreira é uma das referências no que diz respeito ao desenho de estudos de investigação. No entanto, são os meus pais que me têm apoiado de forma incondicional desde o início. Sempre me ajudaram em tudo e quando eu queria desistir porque estava cansado desta luta constante sempre me incentivaram. Se não fosse esse apoio familiar muito provavelmente este estudo não tinha passado de uma ideia.

O que o convence de que esta sua investigação poderá ser uma mais-valia para o avanço da medicina?

Deposito uma fé robusta neste projeto. É curioso que ainda hoje, antes da entrevista, fui contatado por e-mail por uma mãe de uma criança de Braga, um rapaz de 15 anos que tem dores insuportáveis. Está cansado de tomar anti-depressivos porque acham que o problema é da cabeça dele. Ele não se alimenta, está a perder peso, não consegue sorrir, não consegue fazer as suas atividades básicas e tem uma ressonância onde já evidencia existência de artrose severa articular. "O doutor tem alguma solução"?, perguntou-me a mãe. Ou seja, isto é um exemplo real do que esta patologia pode causar em alguns casos, ou seja, as pessoas não se alimentam ... Faça o seguinte exercício: imagine que durante duas semanas não consegue abrir a boca e cada vez que tenta tem dores insuportáveis. Imagina o impacto que isso teria na sua vida? A patologia de ATM severa é muito limitativa e infelizmente sub-diagnosticada. Normalmente, os clínicos não valorizam este tipo de queixas. Este doente com 15 anos se for tratado com os meios que existem atualmente, nomeadamente com colocação de próteses e tendo em conta que está numa fase de crescimento, poderá ter problemas graves com condicionamento do crescimento mandibular e da sua estética facial.

No entanto, acredito que isso pode ser o presente, mas não o futuro. O futuro passa pela regeneração dos tecidos. O que se pretende é colocar um biomaterial que tenha a capacidade de regenerar estruturas orgânicas com as propriedades prévias. E é nisso que estamos a trabalhar e acreditamos que realmente esse é o futuro.

Não posso dar a certeza de que as cirurgias que fizemos agora vão ter um resultado clínico positivo, mas estou certo que vão ter um impacto científico muito grande. O objetivo é continuar a investigar até encontrar algo que possa melhorar a qualidade de vida destes doentes.

Quando é que será feita a primeira cirurgia do género? Já tem paciente? Em que consiste a cirurgia?

Já tenho doentes que poderão ser candidatos, no entanto é um desafio gerir as expetativas destes doentes que têm acompanhado a investigação. Muitos estão entusiasmados, confiam em mim e na equipa de investigação e eu tenho a responsabilidade de não criar grandes expetativas porque não sei se vai resultar, mas se resultar vai ser uma cirurgia óptima por ser minimamente invasiva já que se fixa o disco apenas num ponto. Fica ainda garantida a manutenção do disco dentro do espaço articular.

Os doentes com disfunções mais severas têm sido operados com a técnica convencional, o que significa que uma percentagem destes doentes poderá ter problemas no futuro, mas é a solução que existe neste momento.

Caso se reúnam as condições para que o biodisco seja usado em humanos, será discutido com os doentes essa solução. Serão também informados das possibilidades de melhorias e dos riscos inerentes à intervenção. No fim, decidiremos se será feita ou não a intervenção cirúrgica.

São muitos os portugueses que sofrem de disfunção temporomandibular?

Estima-se que cerca de 30 por cento sofre de distúrbios da ATM, ou seja, os estudos internacionais apontam para isto. Não é possível dizer com segurança se em Portugal os valores são sobreponíveis, porque não existem estudos nesse sentido, por isso usei dados internacionais. Calculo que em Portugal, por ser um país latino, com alguns hábitos semelhantes a outros países como o Brasil e o México, andaremos perto dos 30 por cento. Se me perguntar se todos eles vão precisar de intervenção? Seguramente que não.

Ou seja, a disfunção da ATM é uma patologia muito abrangente. Há doentes em que só com o tratamento simples conseguem ficar bem. Grande parte destes tratamentos são conservadores. O doente melhora e não necessita de intervenção. Isto numa fase inicial. Quando a patologia se deixa prolongar muito no tempo, estes doentes podem evoluir para um estado mais grave precisando de intervenções mais invasivas. Normalmente, começamos por tratamentos menos invasivos e, se não resultar, teremos de partir para tratamentos mais invasivos até chegar à fase dos tratamentos cirúrgicos.

Foi com um kit de cirurgia acessível a todos os estudantes de medicina e enfermagem que se iniciou no mundo do empreendedorismo? Quais os próximos desenvolvimentos para a BlocoMed?

Curiosamente não foi assim que me iniciei no mundo do empreendedorismo. Iniciei-me no mundo do empreendedorismo com 14 anos. Nessa altura fundei uma marca de roupa que se chamava Arabú, uma marca registada criada em conjunto com um amigo de infância, e que fazia chapéus e t-shirts. A empresa faliu ao fim de um ano porque oferecíamos tudo aos amigos e família. Esta foi a primeira experiência como empreendedor.

Depois, já mais a sério é que fundei com o meu colega Miguel Nunes a Blocomed, onde tivemos como objetivo principal fornecer uma ferramenta que fosse acessível a todos os estudantes e profissionais de medicina e que os ajudasse a melhorar a sua performance cirúrgica. Mais uma vez surgiu de uma necessidade porque uma vez estava na urgência e um colega sénior chega ao pé de mim e convidou-me para suturar um doente. Sabia a teoria mas nunca tinha suturado. Fiquei nervoso e demorei quase uma hora. Podia ter tido uma performance melhor se tivesse em casa um kit para treinar e é através da repetição que se atinge a perfeição.  Então, decidimos criar o kit e colocá-lo à venda por cerca de 70 euros, o mesmo preço de um videojogo. Assim nasceu a Blocomed que marcou presença na primeira edição do concurso televisivo Shark Tank. Conseguimos um parceiro com grande peso, o Miguel Ferreira e desde aí tem sido sempre a trabalhar. Temos criado novos produtos. Neste momento, estamos em fase de internacionalização e, o ideal seria que, dentro de cinco anos, todos os profissionais da área da saúde do mundo treinassem com um exemplar BlocoMed feito em Portugal.

Esteve em missão na Guiné-Bissau. O que mudou na sua vida a estadia em terras africanas? O que levou e o que trouxe de lá?

Sempre quis fazer voluntariado e, em 2014, estive na Guiné Bissau com a AMI. Foi sem dúvida uma das experiências mais marcantes e mais enriquecedoras que tive na minha vida e que me fez crescer muito a nível profissional e pessoal. Ainda hoje recordo com alegria o que lá vivi e os amigos que fiz ao ponto da enfermeira que me ajuda nas cirurgias cá ser a que me ajudava nas cirurgias na Guiné Bissau.

No Hospital de Bolama . Guiné-Bissau

No Hospital de Bolama . Guiné-Bissau

Como consegue conciliar o papel de médico, empreendedor, investigador e voluntário?

Quando temos paixão pelo que fazemos conseguimos sempre ter tempo para tudo. Sem dúvida que isso exigiu muitas ausências familiares, até em datas mais especiais. Depois tenho uma namorada que também me apoia incondicionalmente e me dá a tranquilidade necessária para poder gerir toda a minha vida. Todos os que estão  à minha volta e que me vão ajudando acabam por me dar a força e energia necessárias para fazer isto tudo. Como diz o ditado: quem corre por gosto não cansa. E é verdade!

Que atividades tem como hobbies? Sei que adora surf...

Adoro surfar e gosto muito da natureza e, infelizmente, não o faço com a frequência que gostaria. Após alguns sustos, ganhei mais respeito pelo mar e tenho tido mais cuidado e escolho melhor o tipo de ondas para surfar. No mar é umas das raras ocasiões onde estamos sem telefone, sem tecnologia, sem stress. Só nós, a prancha, o sol e o mar.

Conseguimos estar abstraídos de tudo. Há uma sensação de liberdade que nos faz regenerar a alma, que nos revitaliza e ganhamos energia para voltar ao dia-a-dia.

Disse a alguém que o seu lema de vida era não deixar crescer erva à porta dos seus amigos. O que pretende dizer? 

Pretendo dizer que nunca sabemos o dia de amanhã e, sem dúvida, que eu sempre que tenho possibilidades tento estar com a minha família e com os amigos mais próximos. Quando eu digo crescer erva à porta dos meus amigos digo o seguinte: “A minha avó dizia-me sempre: não deixes crescer erva à porta dos teus amigos”, ou seja, quando os visitamos muitas vezes a erva não cresce. Tenho um ritual fantástico: no carro quase não oiço música e aproveito o tempo ao máximo, estou sempre ao telefone com alguém: amigos, família, namorada. Tento não deixar passar mais de um mês sem falar com os amigos mais próximos.

Que mensagem quer deixar a colegas e a jovens estudantes de medicina?

A primeira mensagem que gostava de dar a todos os colegas era para terem calma. Nós vivemos numa geração onde estamos habituados a ter tudo agora e para ter algum sucesso profissional demora tempo. Não conseguimos entrar numa carreira e rapidamente atingir sucesso. E hoje em dia queremos tudo agora. Após três ou quatro anos desmotiva-se porque não conseguimos alcançar as nossas metas. É preciso ter calma e ir saboreando os momentos diferentes de cada etapa e se nos concentrarmos e fizermos as coisas com rigor vamos chegar sempre a algum lado.

O outro grande conselho que gostava de dar é para serem persistentes. Não desistirem à primeira. Conto sempre uma história: o primeiro artigo que tentei publicar foi rejeitado oito vezes. Grande parte das pessoas desistia! Se acreditam no vosso trabalho devem continuar a teimar e nunca desistir. Este artigo foi recusado oito vezes, mas à nona tentativa o artigo foi aceite. Se tivesse desistido o trabalho tinha ficado a meio e não tinha havido uma evolução favorável.

Outro conselho é que sejamos humildes. Eu acho que a falta de modéstia não nos leva a lado nenhum e a humildade é para mim uma das características que mais prezo e que começa a ser rara. Devemos ser humildes no nosso dia-a-dia e não acharmos que sabemos tudo porque ninguém sabe tudo. Estamos sempre a aprender, devemos aprender com os nossos doentes, com os mais velhos, ter respeito por esses valores. Adoro ver gente importante e humilde. Faz-me crescer imenso.

 

Mais nesta secção

Mais Lidas