Do esquecimento de sofridas memórias

Há alturas da vida em que desejamos atravessar o Rio do Esquecimento, de modo a que sua correnteza leve todas as memórias que desejamos esquecer.
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A norte de Portugal, na província do Minho, corre o Rio do Esquecimento. Na milenar lenda todos aqueles que o atravessassem perderiam as suas memórias. 

As Legiões Romanas invasoras e conquistadoras dos povos Ibérios, à margem deste se detiveram, amedrontadas pelo vazio existencial do esquecimento, só caído o mito avançaram. Não desejavam perder o que de único e verdadeiramente possuíam, as suas memórias, a sua essência, a sua vida. 

Eventualmente o Rio do Esquecimento levaria mais do que o desejado. Todavia imaginemos que seria possível, ao atravessar o Rio, escolher quais as memórias a ser esquecidas. Quantos de nós teríamos coragem de o atravessar e com ele esquecer? Todos, provavelmente! 

Creio não se tratar de uma falsa generalização, afirmar que todos nós, em alguma circunstância da vida acreditarmos que gostaríamos de esquecer algo ou mesmo alguém. É habitual, querermos esquecer os episódios mais tristes e mais negativos das nossas vidas. Não há nada de estranho nisso, faz parte do processo de resolução, é uma espécie de negação da realidade percebida. 

Aparentemente, somos tremendamente exigentes e proficientes no que respeita ao esquecimento. Isto, porém, não significa que sejamos objetivos ou assertivos. Esquecemos o que não queríamos ou não devíamos, melhor dizendo, e lembramos o que tanto queríamos esquecer. A vida tem destas coisas! 

Quantos de nós não gostaria de esquecer as derrotas ou ofensas sofridas, no amplo sentido dos termos? Quantos de nós não gostaria de esquecer que um dia perderam algo ou alguém? Muitos, certamente, ou pelo menos assim acreditamos. 

Mas seremos assim, tão mais corajosos que as Legiões Romanas? Seremos assim, tão mais determinados a começar de novo, a querer fazer tábula rasa das nossas memórias? Não creio.

É possível que este desejo de esquecer, na maior parte das vezes, seja um desejo projetado? Um desejo que os outros esqueçam, nomeadamente as nossas desventuras. 

De facto, parece-me, muito mais adaptativo e resiliente, no sentido em que aprendemos com a experiência, seja ela positiva ou negativa, não esquecer. Consequentemente, é a memória da experiência, isto é, dos seus significados que nos permite construir sobre o aprendido. Avançar, seguir em frente. Pois, esquecer é não ter vivido, e, portanto, não ter aprendido. É a possibilidade de ficarmos encerrados num ciclo vicioso. 

Na maioria dos casos desejamos esquecer, pois acreditamos, que esquecendo de determinado episódio o mesmo seria varrido da memória de todos os outros. Porventura, inexistente, em todas as suas dimensões real e subjetiva, se tornaria a experiência. 

Esquecer é assim, uma tentativa paliativa de serenar o nosso sofrimento, independentemente da natureza da memória. 

Possivelmente, sofremos mais com a possibilidade da memória alheia, do que com as nossas perniciosas e tortuosas memórias. Ainda que disto, tenhamos limitada ou inexistente consciência. 

Há memórias que são uma espécie de pecados envergonhados, ou seja, memórias desagradáveis de algo que queríamos não ter vivido ou pelo menos que outros disso não tivessem conhecimento. Reporto-me, claro está, as memórias negativas, das coisas que julgamos ter responsabilidade, e que sobre a qual, a nossa ação teve porventura influência. 

Existe qualquer coisa de assombroso e desadaptativos no desejo de esquecer, seja no do próprio esquecimento ou no desejo que os outros esqueçam. É um processo ainda mais tortuoso que a própria memória ou do evento que a ela deu fruto. 

Assim, como as Legiões Romanas não queriam esquecer, também nós não precisamos de esquecer. Precisamos sim, de aprender a regular as nossas emoções e sentimentos perante determinadas memórias, eventualmente adaptarmo-nos à realidade construída da memorável experiência, se esse for o caso. 

Todas as experiências nos enriquecem, somos o cumular de todas as experiências e significados que apreendemos ao longo da nossa existência. Ainda que pudéssemos esquecer e fazer os outros esquecer, em nada a realidade se alteraria. Esquecer, tornar-nos-ia necessariamente mais fracos, incompletos, vulneráveis à repetida experiência.   

Para tal, precisamos ser resilientes, ter a capacidade de ultrapassar as diversidades que a vida nos impõe. Como resposta e processo adaptativo e alternativo ao esquecimento de sôfregas memórias.

Herculano Andrade

Psicólogo Clínico, membro efetivo da OPP

Sociólogo

 

 

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